Sábado à noite. Lavei o chão da sala. Música, água e sabão. Abaixei para torcer o pano e vi meu reflexo no fundo do balde que já desejei chutar mil vezes. Era uma silhueta escura apenas. Olhei e pensei, sem motivo aparente, que eu não sabia dizer quem eu era. Quem fui até aqui. Nem ao menos quem eu gostaria de me tornar. Não sabia mesmo me descrever. Vai ver nunca tenha existido um "eu" legítimo. Talvez uma mulher nunca seja algo além uma mescla de gente que precise apoiar e acompanhar ao longo da vida. Uma mistura de "só tenho que" com " quem sabe amanhã " tão homogênea que se passa pela pureza de uma substância que dá o sentido da existência real de um ser. Ser forjado culturalmente para servir, ainda hoje caio nas armadilhas desse engodo que romantiza a exploração de maneira tão sutil, velada, encoberta, disfarçada, dissimulada que deixa na palavra de protesto um gosto amargo de culpa por apenas não querer mais ser. E como é solitário assumir a dureza dessa verdade e ao mesmo tempo não se dar em rendição por amor. Não o próprio, que para isso teria que me reconhecer. A questão é que esse amor não garante o mesmo amparo e companhia que oferece quando a conta da subserviência chega. O saldo é geracional e, por tanto, não quita a dívida que provavelmente ficará para outra mulher forte, independente afetuosa, resiliente e exausta. Mas o que importa é que a casa está limpa e posso andar descalça sem sujar os pés.
Prometeu Acorrentado
"...tudo isso porque amei os mortais..."
domingo, 29 de junho de 2025
sábado, 26 de abril de 2025
Mais sobre a saudade
Sinto saudades homéricas de momentos revistados por meio de fotografias tiradas de maneira quase irresponsável. Mas como prever que os registros pudessem provocar um misto de "não sei o quê" com "quem me dera". Sinto falta da ignorância de quem não havia ainda experimentado a descrença como acometimento e não mais como mero sintoma. A patologia degenerativa, progressiva e irreversível. O castigo de quem já viveu o suficiente para saber que daqui em diante qualquer encontro é tratamento paliativo da luta desesperada por alívio e um pouco de qualidade de (não) vida. Porque viver vai longe dessa obsessão de organizar palavras na mente e despejar em uma tela que simboliza o único brilho possível de ser refletido nos olhos órfãos de quem ainda se considera filha de um Deus que não tem certeza se já conheceu.
sábado, 9 de novembro de 2024
Sentença.
Ninguém está imune.
Em um minuto, em quase imperceptíveis frações de segundo, o portal magicamente real do que se acredita sobre o viver, te suga para um lugar que ninguém sabe bem onde é . Então, o bem que se confunde mal; a saúde se traveste adoecida; a lucidez se converte; a lealdade se cansa e trai; a menina acorda senil e vai crochetar ilusões. Ali, já do outro lado, sem saber calcular o quanto já caminhou, você segue urdindo a linha do tempo que também mal se sabe quem começou. Você continua tecendo o ponto cruz que cada um precisa carregar e que talvez, apenas talvez, seja mesmo sua.
Ninguém está imune.
O vírus que vem sempre em larga escala, provoca uma epidemia de nostalgias e salpica a vida com grandes saudades e alguma solidão não mensurável, porque, né, a gente não se especializou na gente mesmo. Então, a gente se vacina da gente mesmo e depois quer se embriagar do outro. É claro que não ia dar certo.
Ninguém está imune.
Côncavo ou convexo, na reta final, todo mundo se vê refletido no espelho. A gente se enxerga sem querer ver. Mas os olhos da alma não tem como cerrar. E, por isso, às vezes, a gente aperta os olhos para embaçar o que está bem ali, nua, sem pudor, e crua, sem sabor - a verdade que sussurra:
Ninguém está imune a absolutamente nada.
sábado, 26 de outubro de 2024
Lentes divergentes (para corrigir a miopia)
Sua escrita pífia é restrita a um lamento piegas de quem se sabe responsável por sua própria existência e que conclui, resoluta, ser ela uma coletânea de grandes desilusões e pequenos fracassos.
Sempre numa busca velada por reconhecimento intelectual, é uma pensadora (do simples ato de processar ideias, mesmo) que tem um talento que se restringe em saber requentar palavras em frases de efeito reformadas por suas péssimas escolhas. Resignada, percebe-se momentaneamente despida de sua mortalha feita de sonhos tímidos e incompetentes, defronte ao seu espelho julgador.
Cínica arrependida, não acredita que haja tempo e busca um pretexto que a distraia dessa certeza tão sincera quanto dura, enquanto sente, por alguns segundos, abençoadamente enganada por uma narrativa mundana espiritualizada disfarçada de (mais uma) chance. Carrega a calma dos desiludidos como escudo e empunha a espada dos sentimentos adormecidos, para afastar os maus espíritos.
Esforçada, empenha-se em crer e fazer crer os que lhe são caros, para sua redenção não literal.
Deseja, resumidamente e acima de tudo, o conforto do bom final, pelo que torce que se demore, para que assista a história fazer sentido, afinal de contas, viver é maravilhoso e um encantador jargão existencial.
terça-feira, 29 de junho de 2021
Ei, você !
Ô, menina, que pena ver você ser assim passada pra trás pelo seu próprio espelho. Se achando o centro do mundo do outro, cega, iludida e melancólica. De uma melancolia tão carente de compreensão, que se defende com a agressividade do órfão abandonado. Arrogância disfarçada de autonomia.
Escuta, moça, deixa eu te contar, prepotência e autossuficiência só têm em comum a tonicidade das palavras. Já o tônus da vida é reconhecer-se interdependente nas relações que cultiva. Dizer-se conectada e solidária às pessoas pela empatia, desde que estejam longe e não possam te afrontar, te testar e te tirar do eixo, nunca passou apenas de repertório para suas redes sociais.
Vem cá, mulher, por que não experimenta a paz que mora nos bastidores dos sentimentos mais simples? Na humildade da autocrítica? Na desafetação? Reconhecer-se ser inacabado é sapiência. Produza o que te alimenta a alma, sem se considerar menos capaz por depender da luminosidade alheia. Estamos todos ao redor do sol, ele não mora no seu umbigo. Deixe que essa ideia te aqueça. E pare de queimar a língua.
domingo, 20 de junho de 2021
Refluxo
Vem das vísceras, o chamado da minha consciência.
O que machuca meu coração dói no meu estômago.
Por isso quase nunca choro. O que transborda em mim é a bile que me regula e desintoxica. Prefiro a possibilidade de dias amargos que uma história azeda.
O que busco é o quinto sabor da vida, respeitando meu sexto sentido, pra não correr o risco de me deixar em segundo plano.
Para digerir certas verdades, as vezes é preciso nausear as incertezas.
É que coragem requer estômago!
quarta-feira, 17 de março de 2021
O segundo que fraciona o inteiro
A gente pisca e o mundo muda.
O sorriso amarela.
A expressão congela.
A paixão aferrece.
O plano se esquece.
A esperança suspende.
A confiança arrepende.
A gente fica na palavra muda.
segunda-feira, 23 de novembro de 2020
E fim
Por que ama esse ser comum? De vontades vulgares e pensamentos também ordinários?
Como foi que o desejo pelo insólito deu lugar à resignação por dias de ambições inócuas?
Mostra a si mesmo a explicação para cessar a busca pelo que lhe afaga , oferece conforto e alimenta sua alma de orgulho.
Assim foi que dia desses interpelou a razão assoberbada de jamais ao coração desarranjado de tanto quase.
Ele, de rima pobre com seu paradoxo por mera ironia da língua, travestiu - se da força do seu simbólico e respondeu, sem hesitar, com a simplicidade que tem tudo que é força.
Eu fibrilo e palpita você tanto engano e egoísmo ! Se eu amasse intentando pecúlios, a estima seria por mim e não pelo ser amado.
Você cobiça com um fim. Objetiva e condiciona, acreditando ser amor.
Quando é amor a gente "não é resposta".
Por isso eu amo porque sim.
quinta-feira, 16 de julho de 2020
"Vergonha é roubar e não poder carregar" - como diria a imagem que tenho da minha avó..
Que pena que eu sinto de quem não consegue expor conquistas , divulgar elogios e fazer mala direta do amor.
Quem não gosta de uma emoção descarada, de uma história bem contada e de uma declaração acalorada?
A moça tá lá zombando da foto e vociferando "que brega", enquanto de lá ele pensa "que dó ".
É que o moço sabe bem que nas horas mais solitárias e de lealdade máxima por si mesma, o que ela deseja é a ingenuidade dos planos para o futuro, a imaturidade do apelido piegas e a cafonice do amor revelado nas redes sociais.
Porque os momentos são virtualmente remotos e o fim é inevitável e real.
sábado, 4 de julho de 2020
Nome pessoal e pronome próprio (e vice-versa)
Ella, que esteve em paz por um bom tempo, havia optado pela guerra. Mesmo com todos os alertas sussurrantes, ela optou pela batalha do improvável contra o aprazível. A certeza do deleite momentâneo sempre caminhou de mãos dadas com a iminente aflição.
Tantas vezes ela quis não querer... Tantas outras desprezou sensações que não sabia se nomeava intuição ou ansiedade. No final, sabia que tudo era sintoma, no sentido literal da percepção da alteração da normalidade que cada um cria pra si.
Mas a transgressão fascina Ella com a mesma força que a amedronta. É um poder que desafia suas experiências. Que ignora seu conhecimento prévio. Que esfrega na sua cara que muitas vezes o saber vale apenas como mais um item no seu checklist de vida. Que conhecimento sem aplicação nunca foi aprender. E, olha, tem coisa que Ella não aprendia!
E agora ela estava ali. Fingindo que não sabia o que fazer. Tentando registar sua quase confissão em uma tela que tinha o brilho que ela queria para seu caminho, a partir de hoje, numa tentativa de criar um álibi para um crime futuro . Afinal de contas, " Um homem nada pode aprender senão em virtude daquilo que ele já sabe".
"Aqui vou eu", pensou. De peito aberto, mas de olhos fechados para não enxergar o abismo no qual estava prestes a cair. Tentando fabricar a esperança de uma luta razoável, de curto prazo e que a inspirasse a criar um teorema que ela pudesse esfregar na própria cara, cada vez que ousasse desafiar axiomas.
Como se a tarefa não fosse difícil o suficiente, Ella sentia um pesar que só de falar lhe embrulhava o estômago e a obrigava a engolir o choro. "Nunca vai ser bonito lutar contra o amor. Nunca vai ser corajoso desistir de um sentimento tão real quanto forte", pensava.
Esquecer o quão bem fez alguém que hoje ela precisava deixar, para não esquecer d'Ella mesma. Mas ela queria poder olhar para o que passou e falar "Quem é que não aprende mesmo, em? ".
Então, quando estava prestes a terminar seus devaneios, teve a sensação de fogo na garganta e soube logo: era a centelha da expectativa otimista incitando sua presunção tão vaidosa quanto tímida.
Ella já não sabia mais se queria ter razão ou ser feliz.
Amanhã ela acordaria e tentaria racionalizar a frase feita, antes de tomar uma decisão. Por que para agora, ela queria apenas aceitar o chamado do subconsciente e fugir, ops, dormir.