quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Vida. Nome próprio ou apelido... "carinhoso?"



Ao ouvir o barulho do carro adentrando a garagem, ela correu para abrir a porta da sala. No forno, uma carne assada esperava pela hora do jantar. Exatamente como lera há tempos atrás, calçava uma bota de cano alto e vestia apenas uma gota do perfume preferido dele. Ele passou por ela para colocar as chaves na mesa, virou-se na sua direção e fuzilou: “Não estou no clima para suas invenções, Vida.”, e foi direto para o banho.

Consumida pela vergonha, ela correu para o quarto, vestiu um pijama sem glamour algum e se deitou. Virada para a parede, sem se cobrir, mesmo sem sentir sono. Dali mesmo pode ver suas botas jogadas e esquecidas no chão e olhando fixamente para ela. Pareciam ter vida, pareciam criticar a idiotice que cometera, pareciam reclamar da humilhação que, junto com ela, acabaram de sofrer. Ao mesmo tempo, parecia inanimadas; assim como ela se sentia, naqueles últimos instantes. Achou meio ridículo, mas não se conteve e escondeu a matéria atrevida embaixo da cama. Ainda deitada, sentiu o cheiro doce do perfume que usava e teve náuseas.  

Levantou-se e tomou o segundo banho em menos de uma hora. Na cama novamente, achou que o instante se perpetuaria se chorasse e, por isso, desistiu. Antes de se entregar ao sono, ainda pode ouvir a voz do locutor esportivo dizendo, “Bola fora, passou loooonge...”. Irritou-se com o oportunismo da narração e se entorpeceu de vez. 

Acordou com o toque da mão pesada dele acariciando suas coxas e respirando alto em sua nuca. Pensou na melhor frase para dizer naquele momento, como desforra, - o que faria com que ela dormisse como um anjo caído do céu- mas não conseguiu. Concentrou-se, então, nos sussurros dele imaginando que a qualquer instante se desculparia pela grosseria e só o que pode escutar foram grunhidos, resmungos chulos. Com o corpo tórpido, ficou apática ao ato, mas ele não reivindicou nada diferente. Por culpa, talvez, mas o mais certo é que fosse mesmo por indiferença.

Nas outras muitas noites depois daquela, estava sempre vestida com um pijama ou camisola de algodão, sentada no sofá, lendo. Desistiu de terminar a leitura de Neruda e há dias devorava os contos de Nelson Rodrigues. No jantar era sempre servido picadinho de carne feito no mesmo dia, e nos outros que se seguiam o requento dela, ao que ele protestou: “Que novidade é essa? Agora, quando chego em casa, você já de pijama, picadinho de carne todo dia e a mesma cara fechada!”.

É... ele não gostava de invenções, nem de novidades. E ela, agora, também não. E foi o que respondeu a ele. 

Por Elga Arantes, 2009.

Um comentário:

Bel Fernandes disse...

Vim pelo afeto de tempos. Vim pra dizer à ele que o desperdício cobra caro da gente. Que dois banhos em menos de uma hora contabiliza metros cúbicos de água que poderia ser benta. Que a vida revira os pijamas pelo avesso depois de tantos desgastes. Vim pra deixar um beijo nela como prova de minha identificação. Vim pra dizer que ela deve ficar linda de botas de canos altos e baixos ... Que a vida è mesmo feita disso! Afeita!
Bela escrita ainda que me doa! E por isso mais bela ainda! Assim entendo!

Um beijo,

A boa filha à casa retorna mesmo depois de reformas significativas!