terça-feira, 14 de julho de 2009

Pas des quatre (ela, ele, a dança, a droga)


- Parabéns, e boa sorte!
- Brigada.
- Você deveria estar mais animada. Com essa cara, tô começando a achar que merecia estar aqui mais do que você. Credo...
- Também acho. Alegria, garota! Agora é a parte mais fácil.

A colega estava certa. Só depois de muitos anos ela soube disso. Só depois de muitos anos é que aprendeu a dar valor ao que realmente importava. Mas, naquele momento da sua vida, confundia, ainda, amor e paixão. Só depois descobriria que seu amor pela dança a salvara por várias vezes. Grand jete para pular os obstáculos, grand battement na cara da tristeza e um
developpé para elevar a estima por si mesma. Não desistiria em plié, ante os problemas mais sérios, e terminaria o allegro em arabesque, para mostrar todo o equilíbrio conquistado.

Cinco. Apenas cinco alunas foram escolhidas, em toda a escola de dança, para realizar o exame que dava o título de bailarina profissional. Apenas cinco aspirantes estariam aptas a serem avaliadas pelo corpo de baile docente da companhia de dança mais importante da cidade. E, agora, ela estava ali, entre três. Apesar de quase não acreditar, passara na primeira e eliminatória etapa de ballet clássico, e se despedia das duas colegas que não tiveram a mesma sorte.

Sentou-se no corredor, distante da euforia ansiosa dos outros, tirou as sapatilhas já surrada por anos de uso, dobrou a meia calça até a altura das canelas (nunca comprava meia calça com pé) e se deixou ficar, imaginando onde ele poderia estar. Foi também a primeira vez em que pensou em como ele era egoísta. Ele sabia o quão importante era o exame para ela. Por mais de um mês, não conseguia pensar, nem falar em outra coisa que não fosse aquela prova. Como ele podia ter feito isso com ela? Ele sabia como ela ficava preocupada com seus sumiços. No dia anterior, depois de ligar na casa dele e descobrir que ele não havia dormido lá, chorou sabendo que seria mais um dia angustiante, em que sentiria ânsia de vômito e teria que simular um sorriso sem graça no rosto para que seus pais não percebessem sua tristeza. Naquela altura, depois de mais de dois anos de relacionamento, já sabia que era um viciado. Quando descobriu, foi capaz de achar que melhor isso que estar sendo traída com outra mulher. Ainda não sabia que “Renata” (gíria usada pelos “simpatizantes”, na época) era a mulher mais poderosa e manipuladora que ela jamais conheceria.

Foi até o orelhão, pela quinta vez, para descobrir que ele não havia chegado em casa. Mais uma manhã, a cama dele amanhecera vazia. Depois ligou para casa, tentando uma voz desinteressada. Ele não havia ligado. Dessa vez, parecia sério. Era a primeira vez que passava mais de uma noite na rua, sem dar notícias. Desligou o telefone e foi correndo para o banheiro chorar. Bateram na porta: “Sua vez”. Apressou-se, calçando as sapatilhas de lona de qualquer maneira, lavou o rosto, inspirou e expirou profundamente e saiu do reservado. “Tava chorando de novo? Não quer dizer, mesmo, o que está acontecendo?”. Não. Ela não queria falar sobre aquilo. Sentia vergonha demais em se admitir apaixonada por um viciado irresponsável. Passou na segunda etapa, também. E tentava decidir se apresentava o adágio final ou se corria para a casa dele para ter mais detalhes da tragédia que se instalava em sua vida jovem de nem vinte anos, ainda. Enquanto resolvia, chegou a sua hora. Dessa vez foi mais rápido; já eram pouquíssimos os classificados para a fase final.

Entrou na sala acenando com a cabeça num cumprimento respeitoso. Entregou a fita cassete com a gravação da música escolhida para a coreografia que criara para o teste. Virou-se de costas, posicionou-se com o pé direito em peia ponta e o corpo levemente pendido para o mesmo lado, braços largados, e com a cabeça e os olhos volvidos para o chão. Engraçado como aquela posição refletia seu estado de espírito naquele dia, pensou. Acenou, permitindo que ligassem o som e... a fita embolou! “Calma, vamos tentar de novo”. Na segunda tentativa, algumas notas puderam ser ouvidas, antes da fita se enrolar, mais uma vez. Era muita pressão. Não segurou e explodiu num choro redentor. A banca sugeriu que ela se acalmasse. Tentariam solucionar o problema. Ela sinalizava com a cabeça a negativa, recusando a oferta. “Não quer tentar mais uma vez? Pense na oportunidade”. Ela tinha razão. Era a oportunidade que ela tinha de sair dali correndo. E foi o que fez. “Também fiquei muito nervosa no dia do meu exame, mas segurei as pontas. Essa meninada de hoje não tem disciplina”. Comentou uma professora com a colega ao lado.
Mas, no caso dela, na sapatilha, pó branco nem sempre era talco. Engraçado, como aquele ocorrido refletia o estado de seu coração naquele dia. Enrolado, confuso, constrangido.

Correu muito até o ponto de ônibus, sem se preocupar com as pessoas que a olhavam na rua com curiosidade e compaixão. Deixou-se cair no banco. Deixou as lágrimas cairem, livremente, em seu rosto. Ficou contemplando o nada, por todo o trajeto. Enquanto se aproximava da casa dele, forçava a vista, numa tentativa desesperada de enxergar o carro dele na garagem. Estava lá! Ela não podia acreditar. Deu uma passada veloz, como que ensaiando sair em disparada, depois freou. Ela devia preparar uma represália, exigir explicações, dizer que não admitiria mais, impor condições. Estava cansada demais de tudo aquilo. Tinha que ser dura. Não aceitaria passar por isso de novo, nem uma única vez mais. Estava cansada demais de tudo aquilo. Daria nele um gelo, dois dias sem o encontrar. Deixaria ele implorar pelo seu amor. O faria se arrepender do que fizera. Estava cansada demais de tudo aquilo.

Antes de tocar a campainha, olhou através do vidro do carro dele para ver se encontrava algum objeto comprometedor. Tudo muito insuspeito. Foi ele mesmo quem abriu a porta. E ao olhá-lo, ela só pôde chorar e cair nos seus braços, enfraquecida. Ainda não foi dessa vez que teve forças para deixar tudo para trás. Ainda se renderia por algum tempo. Estava cansada demais de tudo aquilo.

Por Elga Arantes, 2009.



 CARL ORFF - CARMINA BURANA

17 comentários:

sblogonoff café disse...

Que droga...

sblogonoff café disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
sblogonoff café disse...

Perfeit a colocação de O Fortuna. Os versos finais são como o final do post. "Porque a sorte abate o forte. Chorai todos comigo".
Eu não sabia da Renata, mas credito que ela tenha gerado novas óperas em português.
Muito corajosa a escolha da bailarina.

Amanda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Ainda não consigo imaginar melhor maneira de conhecer outros lados de velhas histórias senão através de textos como este.
Como é sensível minha irmã insensível...

Corba disse...

Clichê? Ah, você provavelmente está certa...mas a gente também precisa de um pouco de obviedade na vida, né?

Corba disse...

Ah, ia esquecendo: se você não gostou da Elga, talvez goste da Olga. Vide "A Sina de Marcos - Partes 1 a 3", lá na casa da demência que eu chamo de blog...

Alê disse...

Na verdade é só um oi pra você bjo do Alê.

Galeno disse...

Isso seria cômico se não fosse trágico ou vice versa?
Um abraço,
Galeno (Comida di Buteco)

Karen disse...

ai meu deus, agora faltaram-me palavras. Sabe, meu sonho era ser bailarina, quando menina. Não foi isso que aconteceu. Querendo ou não, nem todas somos bailrarinas, mas todas somos grandes mulheres.
bjo no coração.

Corba disse...

café da manhã no micro? céus, mais junkie que eu...legal!

Noé disse...

Que texto bacana, forte, sensível...

Bel disse...

Saudades tuas, Adorável. Suadades ... mesmo. Pode?
Um beijo, Bel.

Corba disse...

Ah, então a Olga agradou mais? Bacana!

Thaís Gomes disse...

Olá! Tem um selo para você lá no Meu Mundo!

http://omundobythais.blogspot.com/2009/07/meu-primeiro-selo.html

Espero que goste da minha indicação.

Inté mais..

Thaís Gomes
http://omundobythais.blogspot.com

Bel disse...

Adorável cadê você?
Precisas de ajuda pra se desacorrentar? Mande um sinalzinho de que estás bem ... de férias e sorrindo? Mande notícias nos dizendo que a Mel te lambuza e te faz gargalhar?
Um beijo,
Saudade maior que antes.
Bel.

sandro caldas disse...

Oi, Elga! Achei seu blog muito sensível, inteligente! Vou sempre visitá-lo a paritr de hoje!
Sou um jornalista de Salvador, 31 anos.
Me daria a honra de navegar pelo meu espaço também?
Te espero lá. Bjs!