segunda-feira, 6 de julho de 2009

A mulher invisível

Ela achou que ele não notaria. Mesmo assim, foi lá e fez. Hidratação nos longos cabelos, sobrancelhas e unhas. Vermelhas como quase sempre, nas mãos. E dessa vez, pela primeira vez, arriscou usar a mesma cor nos pés.

Não era um dia especial. Iriam ao cinema depois do expediente, como acontecera em muitas outras quarta-feiras. Como havia aproveitado o horário do almoço para tratar do visual, comeu apenas um sanduíche natural, ali mesmo, sentada na cadeira do salão de beleza.

Já no final da tarde, quase na hora dele apanhá-la no trabalho, entrou no banheiro apertado da repartição. Primeiro, escovou os dentes. Retocou a maquiagem. Sombra para realçar as sobrancelhas, cuidadosamente aparadas e desenhadas por Desiré (pseudônimo de Cleislaine, a moça do salão que odiava seu nome). Reforçou a linha escura que delineava a raíz dos cílios superiores, e, nestes, passou a quarta camada de rímel do dia. Algumas pinceladas de blush rosa para dar um aspecto sadio ao rosto e um batom líquido cor da boca. Borrifou o perfume doce no pescoço, nos punhos e por cima da blusa limpa que trouxe na bolsa e trocara, ali mesmo, no reservado. Ajeitou os cachos do cabelo, sem pente, para não ouriçar.

Quando abriu a porta do banheiro, a colega esperava sua vez, do lado de fora. Sentindo a maré adocicada que vinha lá de dentro, exclamou: “Hoje tem!”. Ela sorriu, omitindo a ansiedade.

O celular tocou e ela desceu as escadas correndo, socando o salto alto da sandália nos degraus de ardósia, provocando um ruído seco e descompassado. O elevador demoraria e ele não gostava de esperar. Lá embaixo, antes de abrir a porta que dava para a rua, alisou a saia, na altura dos quadris, distribuiu uma mecha de cabelo sobre o colo, por cima de cada ombro, ensaiou um sorriso quase sexy e saiu. Lá fora, enquanto desfilava sua vaidade objetivada, pensava no quanto gostaria que as coisas fossem diferentes. Ao mesmo tempo, pensava no quanto gostava daquele homem e em quantas vezes já... “Anda logo, Clara! Não vê que eu tô em fila dupla???”. Gritou ele, interrompendo seus pensamentos.

Menos confiante e mais desconfiada, entrou no carro e inclinou o corpo na direção do motorista, enquanto este pendia a cabeça para o outro lado, quase para fora do carro, vislumbrando a retaguarda para que pudesse deslocar o veículo. Os movimentos foram, como que, sincronizados. Ela pensava se o gesto não havia sido uma dissimulação para evitar o beijo, quando ele deu um tapinha na sua perna e perguntou: “E aí, tudo tranquilo?". Ao que ela respondeu com um Humrrum fadigado.

- Clara, abre essa janela pro ar circular. Minha sinusite está atacada e esse seu perfume doce tá me arrasando.

Arrasada, ela fechou.

- Escolheu o filme que a gente vai ver?
- Não.
- Por que?
- Porque não.
- Ihhh, tá mal humorada? Se não quisesse sair era só ter avisado. Quer que te deixe em casa?
- Tanto faz.
- Pô Clara, tá foda, viu?! Eu pego um trânsito fudido pra te pegar aqui, demoro quarenta minutos da Praça da Liberdade até a esquina da Getúlio Vargas pra você ficar com essa cara?
- É a única que eu tenho. Aliás, pra você deveria ser mesmo única, já que você não repara nada de diferente. Nunca!
- Aaah... Então é isso? Não seria mais fácil dizer: “Amor cortei o cabelo”...
- Eu não cortei o cabelo.
- Tá, tá, é uma suposição; só para citar o exemplo.
- Então tá bom. Olha pra mim. O que você vê?
- Hum! Tá linda.
- O que?
- O que, o que?
- O que está lindo em mim?
- Tudo, uai.
- Tudo, o que?
- A roupa, o cabelo... Já sei! Você pintou o cabelo?
- Pintei, Fred, ele era loiro até ontem, não lembra?
- Pára de brincar.
- ...
- Você está brincando não está? - falou usando um tom debochado.

Ela, já amarrando displicentemente os cabelos com um elástico, emaranhando os cachos, respondeu que era ruivo e riu, mais de desalento que de graça. Ele estava brincando, claro. Ela esperava que sim. E foi assim que resolveu selar a paz entre eles. É que, apesar da negativa, ela já sabia qual filme assistiriam. E já se imaginou chorando no meio da trama dramática e ele a confortando com pequenos carinhos. Isso bastaria, por hoje. Além do que, não poderia ser tão exigente com ele. Afinal, os homens eram assim, em geral. Porque seria, logo com ele, de forma diferente? Eles não se prendiam a pequenos detalhes, nem às sutilezas da vaidade feminina.

- Clarinha, encontrei sua amiga de faculdade hoje, na hora do almoço – disse ele querendo enterrar, de vez, a discussão anterior.
- Quem?
- Pois é, esqueci o nome dela. Uma loirinha.
- Assim não dá pra saber. Como ela é? Ah... a Renatinha?
- Não! Aquela não é loirinha. Tem uma espiga de milho na cabeça. Cabelo mais feio, duro, ressecado. Deve passar aquelas merdas no cabelo pra deixar ele mais liso. Essa que encontrei, não. Tem o cabelo liso, sedoso; desses que balançam mesmo. Parece até que é loira natural. Deve fazer... Reflexo, que fala, ne? Tá sempre de esmalte clarinho nos pés e nas mãos. Tem uns cílios compridos e usa lápis no olho, puxando nos cantinhos, fazendo os olhos ficarem mais apertadinhos. Usa perfume com cheirinho de bebê e...
- Socorro!!!
- Que foi, gente?
- Maria do Socorro. É o nome dela.
- Isso! Vocês a chamam de Mary Help, não é? Engraçadíssima, ela...Ela te mandou um abraço.
- Prefiro minha parte em dinheiro.
- Putz.... voltou o mal humor...
- Quer saber, Fred, me deixa aqui. Não vou mais no cinema porcaria nenhuma.
- Quer saber, Clara? Cansei de te adular. Quer ir, vai.

Ele a deixou no ponto de ônibus e arrancou o carro, cantando pneus, propositalmente.

Clara, deu a ele a chance de ir atrás dela, ao deixar dois ônibus passarem. Mas pegou o terceiro. O trocador da linha, já conhecido, falou: “Tá bonita! Passou até esmalte vermelho no pezinho.” Ela agradeceu, escancarando um sorriso amistoso.

Lá atrás, no ponto de ônibus, um carro parou e perguntou:

- Tinha uma moça esperando ônibus, neste ponto, agora a pouco. Você viu se ela pegou o ônibus?
- Uma morena que tava de blusa azul?
- Morena? É... acho que é meio morena, sim. Mas não lembro se ela estava de blusa azul...


Por Elga Arantes, 2009.
Ilustração em www.vidabesta.com

Em tempo: "Affair remove montanhas" (Nealdo, Carlos)


 Zeca Baleiro - Salão de Beleza

11 comentários:

Bel disse...

Ai ... que máximo! Um vaievem de sensações. Durante o texto sempre há a possibilidade de tudo se ajeitar e de repente ... boommm! O estrondo que a displicência ecoa. O Olhar cuidadoso que se dissolve com a urgência do tempo.Tantas pequenas coisas que se perdem em meio a mecanicidade do estar junto por estar!
Clara fezs bem ... muito bem. Deixou-se levar ...
Adorei esse Adorável!
Um beijo, Bel.

Ricardo disse...

leitura mais gostosa!
é isso mesmo que rola no dia a dia.
valeu, colega
Ricardo.

Thaís Gomes disse...

Achei e adorei seu blog, amiga! Quanto a esse texto, postei uma dica poderosa no meu blog. Cito, em Frases de meu pai, uma máxima "Ninguém sabe o que o mudo quer"! A gente age como se todos ao nosso redor tivessem que adivinhar nossos desejos. O que queremos do outro deve ser dito! Assim evitamos essas discussões...

Beijo

Thaís Gomes
http://omundobythais.blogspot.com

Ela disse...

Se é isso mesmo que rola, que todas elas saiam dos carros e subam nos ônibus!
Estava com saudades de ler por aqui, mas santas férias, estou de volta! hehe
beijos,
Luiza

Anônimo disse...

O cara é cego e a mulher é uma chata.
Ele não tem olho e ela não tem boca.

sblogonoff café disse...

Hahaha!
Seria cômico se não fosse trágico.
Seria trágico se não houvessem exceções na vida real.
Mas se esse texto for ficção baseado em fatos reais, devo dizer que adorei. Adorei até a Desiré com pseudônimo de Cleislaine!
Eu no lugar dela não consigo só pedir pra parar. Peço logo pra sair, 02. Porque o cara repara em tudo e não me repara, poxa.
Freud explica....
ou não.

Adorei o texto.
Vai me servir de base pra uma coisa...


Sopro de Eves

Elga Arantes disse...

Deve ser, sim, baseado em algum fato real de alguém, mas, nesse caso, não meu. Ainda. E ainda bem. Ou não. Se fosse comigo, ao menos, estaria no meio (ou no fim) de uma construção histórica com alguém. Como sinto falta disso. Rs! Assim, sinto em decepcioná-la, mas Desiré e Cleislaine existem só nas minhas loucuras. Mas Mary Help existe. Beijo.

sblogonoff café disse...

Rs!! Uai, eu acho "mais bão" inda se for invenção sua!

Anônimo disse...

E que invenção mais com sabor de verdade, comédia só quando não é com a gente heheheh! Parece uma dessas crônicas casos da vida cotidiana!!

Paty disse...

Mas tá cheio de Clara nesse mundo. E de Fred, nem se fala.

Adoro posts historinhas.

Bjos.

Corba disse...

Galvão é o cara...e a história é meio triste, né? Cara grosso!