quinta-feira, 14 de maio de 2009

Vida. Nome próprio ou apelido... carinhoso?


Ao ouvir o barulho do carro adentrando a garagem, ela correu para abrir a porta da sala. No forno, uma carne assada esperava pela hora do jantar. Exatamente como lera há tempos atrás, calçava uma bota de cano alto e vestia apenas uma gota do perfume preferido dele. Ele passou por ela para colocar as chaves na mesa, virou-se na sua direção e fuzilou: “Não estou no clima para suas invenções, Vida”, e foi direto para o banho.

Consumida pela vergonha, ela correu para o quarto, vestiu um pijama sem glamour algum e se deitou. Virada para a parede, sem se cobrir, mesmo sem sentir sono. Dali mesmo pode ver suas botas jogadas e esquecidas no chão e olhando fixamente para ela. Pareciam ter vida, pareciam criticar a idiotice que cometera, pareciam reclamar a humilhação que, junto com ela, acabaram de sofrer. Ao mesmo tempo, pareciam inanimadas; assim como ela se sentia, naqueles últimos instantes. Achou meio ridículo, mas não se conteve e escondeu a matéria atrevida embaixo da cama.

Ainda deitada, sentiu o cheiro doce do perfume que usava e teve náuseas. Levantou-se e tomou o segundo banho em menos de uma hora. Na cama novamente, achou que o instante se perpetuaria se chorasse e, por isso, desistiu. Antes de se entregar ao sono, ainda pode ouvir a voz do locutor esportivo dizendo pela TV, “Bola fora, passou loooonge...”. Irritou-se com o oportunismo da narração e se entorpeceu de vez.

Acordou com o toque da mão pesada dele acariciando suas coxas e respirando alto em sua nuca. Pensou na melhor frase para dizer naquele momento, como desforra - o que faria com que ela dormisse como um anjo caído do céu- mas não conseguiu. Concentrou-se, então, nos sussurros dele, imaginando que a qualquer instante se desculparia pela grosseria e só o que pode escutar foram grunhidos, resmungos chulos. Com o corpo tórpido, ficou apática ao ato, mas ele não reivindicou nada diferente. Por culpa, talvez, mas o mais certo é que fosse mesmo por indiferença.

Nas outras muitas noites depois daquela, estava sempre vestida com um pijama ou camisola de algodão, sentada no sofá, lendo. Desistiu de terminar a leitura de Neruda e há dias devorava os contos de Nelson Rodrigues. No jantar era sempre servido picadinho de carne feito no mesmo dia e nos outros que se seguiam o requento dele, ao que ele protestou: “Que novidade é essa? Agora, quando chego em casa, você já de pijama, picadinho de carne todo dia e a mesma cara fechada!”.

É... ele não gostava de invenções, nem de novidades. E ela, agora, também não. E foi o que respondeu a ele.

Por Elga Arantes, 2009.

6 comentários:

Bel disse...

Adorável,
Saudades muitas de ti.
Teu conto é tão cheio de significados pra mim ... tanta vida há nele que nem sei o que dizer. O que me resta é te pedir pra que nunca deixes de escrever, adorável. Tua escrita é tão dilacerante que sempre modifica. Coisas em ti ... coisas no mundo inteiro. Eu acredito tanto nisso.
Um grande e afetuoso,
Sininho.

sblogonoff café disse...

O mais irônico foi que ela começou a ler Nelson Rodrigues!
É a vida...

Anônimo disse...

A vida como ela é.

Ela é como a vida...
A vida é como ela...

A ordem dos fatores muda pouco o sentido das coisas...

Como? A vida é ela? ...
Como ela. É a vida...

...mas a influência de fatores externos fazem toda a diferença.

Denise disse...

e....aceitou a vida como ela se apresentava.

Quanto desperdicio não é?

Denise

Denise disse...

Elga acredito SIm em afinidades e que somos todos sedentos por percebe-las e ao percebe fazermos surgir a amizade.
Creio sentirmos coisas parecidas uma em relação ao espaço da outra.
Aqui me senti bem vinda e em casa.........tanto q ja fui entrando e comentando rs.

Quem sabe dai num pode surgir uma amizade não é?

Elga Arantes disse...

Bel, só se prometer não deixar de escrever tb. Nem de fazer parte do meu mundo, nem de ser tão humana como és.

Michele, queria muito falar com vc. Fui a Sete Lagoas, mas não consegui falar com vc. Vamos marcar um chá da tarde ou qualquer outra 'Opinião", aí.

Denise, o legal são mesmas essas múltiplas opções.

Anônimo, queria que não fosses anônimo porque adorei sua explanação e minha curiosidade é uma coisa!