quarta-feira, 6 de maio de 2009

Conto

Adorava as manhãs frias do final do mês de abril. E o sol do outono, emoldurado por um céu limpidamente azul, amornavam as idéias geladas sobre desesperança que ela vinha trazendo no peito. Também o sol, iluminava as boas recordações que guardava na memória. Mas também trazia à tona outras que, paradoxalmente, deveria, mas não conseguia esquecer. As lembranças do que tinha sido e do que desejou ser, entrelaçadas as experiências mais recentes e desanimadoras, faziam-na escrava.

A urdidura de sua vida, até agora, poderia mesmo ser comparada àquela colcha de retalhos guardada no fundo do roupeiro de sucupira do qual, por algum motivo inconsciente, ela não conseguia se desfazer. A morte da mãe e o sentimento de culpa por não ter sido, na maioria das vezes, negligente com as idéias antiquadas e preconceituosas daquela foi o mais próximo que ela conseguiu chegar de uma hipótese no âmbito da consciência que pudesse responder tal questão. Sua mãe adorava velharias. Talvez, manter aquele móvel antigo, sem nenhuma utilidade aparente, fosse uma maneira simbólica de se redimir. Poderia ter feito vistas grossas a sua constante falta de flexibilidade no julgamento que fazia das pessoas e das coisas do cotidiano, em geral.

Justo ela que defendera, tantas vezes, - e esse era seu mais forte argumento nas discussões com a progenitora - a relatividade da verdade, a existência de uma ditadura cultural e a manipulação das massas, não usara tais elucubrações para evitar os embates que pretendiam impor um ponto de vista, dentro do seio familiar. A vida fora dura fazendo-a pagar, justamente com a ausência da própria mãe, sua falta de coerência e caridade para com os mais próximos. Toda a condescendência com os próximos mais distantes não foi suficiente para livrá-la do cárcere do arrependimento. “A caridade deve começar dentro de casa”, ouvira tantas vezes aquele velho padre velho falar, automaticamente, em seus sermões que mais pareciam declamações de poesias, tamanha a dramaturgia utilizada em cada missa.

A maternidade, contudo, não mexia com ela somente quando no papel de descendente. Quando olhava sua prole, quase que despretensiosamente, sentia o temor que tinha do castigo merecido, que certamente receberia, por sua omissão. A falta da verdade era a fantasia que travestia aquele segredo cultivado por anos a fio e sabia do risco da máscara cair no baile de gala, bem na hora da valsa principal. Se ao menos aceitasse o mal feito na qualidade de mentira nua e crua... Mas, não! Seria demais admitir tamanha imperfeição. Mesmo tendo, a cada dia, mais certeza da carga enorme dela que levava em sua trajetória. Ainda lhe restavam forças para brigar pelo personagem passivo naquela história. A atividade, naquele caso, era crime para pena perpétua, em um país sem pena de morte. E apesar de tudo, (que, por vezes, dependendo do estado de ânimo, pensava mesmo ser quase nada) desejava viver. Plenamente. E isso, por si só, legitimava sua sonsice.

Raramente, sentia vontade de registrar por escrito a confissão. Mas nunca, nunca mesmo, levantou a hipótese de revelar tudo àquela outra mulher. E é aqui que a maternidade tem relação com o mistério. Era mãe também e podia imaginar a dor que causaria quando da declaração. Ainda, no âmbito das relações maternas, imaginava se sua própria filha poderia aceitar o ônus de filha da mãe daquela “filha-da-mãe” ou, melhor dizendo, filha daquela “filha-da-mãe”. Achava que não. E a simples dúvida anulava qualquer possibilidade de manifestação. Neste caso, e apenas neste caso, seu amor ao próximo era infinitamente maior que seu amor aos próximos menos próximos (ou mais distantes). E esses sentimentos inversamente proporcionais nas relações entre ela e sua mãe e entre sua filha e ela, além de insensatos, fazia com que ela se sentisse ainda mais egoísta do que sempre aceitou ser.

Mas ali, no topo do mundo, acreditou que poderia qualquer coisa, ao menos até o momento vindouro que ela jamais esqueceria. Instante que seria lembrado todos os dias da sua vida, a partir daquele. Nesse dia, no alto da serra de nome piedoso, mais perto do céu e do sol, sentiu um frio que lhe calou a alma. O sol que há minutos atrás lhe aquecia as faces, agora, atrapalhava a visão de apenas alguns palmos de distância. “Mamãe, olha aqui, o vento tá bagunçando meu cabelo. Nenhum passarinho tem cabelo, não?” Uma observação e uma indagação infantil que ela queria acreditar não ter relação nenhuma, mas não estava convencida, infelizmente. A única certeza que queria, ali, era a de que seria perdoada pela distração momentânea que levou sua filha até a beira daquele abismo com os bracinhos bem abertos e os olhinhos cerrados. Qualquer coisa que ela respondesse poderia encher de coragem aquela, ainda, quase bebê. Também, nem se quisesse poderia emitir qualquer som. Estava completamente aturdida. Foi então que ouviu uma voz feminina dizer, “Não! Nenhum passarinho tem cabelo. Se tem cabelo, pode ser qualquer coisa, menos passarinho! Nada que voa tem cabelo”. Ela o que diria, se pudesse pensar na melhor resposta. Mas, definitivamente, não foi ela quem proferiu tais palavras.

No espaço de um depois que não sabia dizer se de poucos minutos, ou de brevíssimos segundos, já protegendo a visão com a palma das mãos por cima das sobrancelhas que emolduravam um semblante tenso, viu sua filha, sua tão amada filha de mãos dadas a uma mulher. Não podia acreditar, mas era inevitável, era mesmo “aquela” mulher. Ela salvara a vida de sua filha, como pagamento pela morte de seu primogênito? Seria um tapa com luvas de pelica que a vida lhe dava? Não. Era muito mais que isso. Era a convocação para a cadeira elétrica. Fora exilada de seu país. De sua terra natal. De seu esconderijo secreto da omissão. Teria que confessar tudo. Perderia muita coisa, mas nada importava mais que perder a admiração e o respeito de quem mais amava. Seria mesmo uma espécie de suicídio alternativo. Mas tinha que contar. Não poderia perder a dignidade. Sem esta, não teria o direito de entrada nem mesmo ao purgatório, quando da privação natural da vida. Teria que contar-lhe.

Ao mesmo tempo, se isso for possível, articulava alguma saída alternativa, através de sua maquiavélica manipulação de pensamentos. Questionou falsamente a si mesma, “que direito teria ela de pagar com a dor um favor impagável?”. O que pretendia lhe contar, regaria um solo seco, já quase totalmente infértil, com a mais pura água. Daquele chão improdutivo, no qual a mulher caminhava descalça com os pés já anestesiados pela perda, poderia nascer flores negras, espinhosas que lhe machucaria os tornozelos, fazendo sangrar-lhe o coração. Teria ela o direito de abrir novas feridas? Tal revelação amenizaria seu sofrimento? Traria algo de bom para sua vida?


Pensou que a única beneficiada com tal atitude seria ela própria, que ficaria livre do enorme sentimento de culpa (melhor dizendo, da omissão) e da falta de dignidade que fazia com que ela se sintisse diminuída e incompleta. Decidiu pela auto-punição. “Tenho que pagar pelo meu erro”, dissimulou.

O segredo continuaria sendo segredo. “Ninguém nunca vai saber”, decidiu. Ela disse, NINGUÉM!

Por Elga Arantes, 2009.

3 comentários:

Elga Arantes disse...

Gente, sem viagem!
Isso é apenas um conto que foi escolhido no concurso de mini-contos da escola em que trabalho. Tinha como tema, " O SEGREDO".

Paty disse...

Adorei!
Adoro vir aqui, apesar de vc estar bem devagar ultimamente né? hehehe.
Saudade de vc...

Anônimo disse...

Espero que seja só um conto.

Credo... geleiiiii!!!!!