quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Parte II - Da agulha que conduz e fere; da linha que une e arremata


Foi assim que se acostumou a conviver com a vantagem e a esperança; a dúvida e o talvez. Nas noites mais solitárias, ela colocava os fones de ouvidos, ligava o botão do play e ouvia as músicas que escolheu como trilha sonora para quando se permitia sentir menos alegria e libertar os fantasmas do porão quase inóspito de seu coração.

Ele, em seu tempo, se rendeu a pressão que seu coração fazia freqüentemente e decidiu, além de não mais se isentar, ir até ela declarar seu amor e confessar o amargo na boca que o novo agora deixava. Pensou que apesar do medo expectante que provavelmente experimentaria enquanto aguardava a reação dela ao ouvir sua rendição, nada poderia ser pior que aquela dúvida e aquele talvez. Era avesso a vantagens e não confiava em esperanças vãs.

Da porta da sala, ele a avistou sentada de frente para a TV desligada. Sua posição privilegiada permitia que ele a visse sem que ela também pudesse enxergá-lo. Assim, teve tempo para observar. Sentada numa poltrona de encosto alto, ela não se movera; nem percebera a presença dele. Continuou com o cotovelo esquerdo fincado no braço da poltrona e a cabeça apoiada sobre os punhos cerrados. “O que ela faz ali?”.

Sem se importar com mais nada, ele respirou fundo e disse: “Eu ainda amo você”. Depois, imediatamente, fechou os olhos como se pudesse se resguardar de um insucesso. Ela continuou imóvel. Ele, tendo medo de uma reação pior, – se bem que sempre acreditou na indiferença como a punição mais cruel que se podia aplicar a alguém- saiu dali fugindo do equívoco cometido. Pensou que a apatia dela talvez fosse fruto de uma desforra. Ela não admitira ter sido ignorada depois de tamanha permissividade. Talvez, ele devesse ter respeitado o receio que havia pressentido. Deveria ter se preservado de tamanho desprezo.

Sentada, ainda de frente para a TV desligada, arrancou a folha do caderno onde escrevia uma carta declarando a ele seu amor; hoje, maior que o medo e menor que sua certeza de que amar bastaria. Possivelmente, não fosse o momento certo para se expor daquela maneira, pensou. Não queria mais se enganar com a idéia de que as noites febris que tiveram e os olhares atentos que flagrava, algumas vezes, eram sinais que indicavam recíproca. Vacilou.

Quando a próxima música começou a tocar, ela apertou o stop e retirou os fones de ouvido. Viu a porta da sala aberta e pensou que havia encostado-a ao entrar. “O vento deve tê-la empurrado”, supôs.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, o vento, agora bem mais brando, assoviava uma melodia triste que deixaria a trilha musical dela "no chinelo". Foi o que sobrou da tempestade daquele dia cinza e chuvoso de agosto.

Por Elga Arantes, 2009.


3 comentários:

sblogonoff café disse...

...a gente pensa demais enquanto o ar vira movimento e simplesmente venta...


(...)

Por pensar demais nos dispensamos

Bárbara M.P. disse...

Simplesmente.

Bel disse...

Adorável,

Mesmo que tudo isso que vivestes valesse apenas pra produzir tantos entendimentos sensíveis como esse que esboças ... sempre. Mesmo assim essa dor teria valido à pena. Mas, é tanto mais que isso, adorável. Tudo isso te faz tão singular! O amor sempre te rodeia, adorável, sempre! O Talvez cada vez mais se distancia de ti, do que queres e desejas, de verdade. Eu sinto isso! Sinto que tua liberdade te conduzirá por caminhos bordados por pontos cruz. Um tapete colorido.
Um beijo, pra ti ... minha
adorável.
Texto emocionante esse! Lindo! Linda!

Sininho.