quinta-feira, 18 de setembro de 2008

"Você tem fome de quê?"


Abriu a geladeira e ficou olhando dentro dela por alguns segundos. Fechou. Resolveu trocar a roupa que usava desde que saíra de casa, pela manhã.

Entrou no quarto, sentou-se na beirada da cama, tirou os sapatos e parou por mais alguns segundos, agora fitando a gaveta quebrada da cômoda. Pendurou o blazer no cabide, jogou a calça e a blusa no cesto de roupas usadas e voltou para o quarto. Colocou a velha calça rosa de ginástica, (que nos últimos tempos só era usada para exercitar o ócio) o moletom branco e meias amarelas. Não era um final de dia, exatamente, frio; não exigia o uso de meias, mas aquele era um dos raros dias em que se rendia às exigências de sua vaidade. Hipoglós nos calcanhares e um hidratante bem encorpado no restante dos pés. E só tiraria as meias para dormir. Odiava dormir de meias. Tinha “gastura”.

Voltou à cozinha, abriu a geladeira mais uma vez, pensou no sabor do queijo, imaginou-se tomando um suco, fez menção de pegar um iogurte, depois desistiu. Não estava com fome.

Ligou a televisão da sala e saiu de lá. Sentou-se de frente ao computador, passeou um pouco por "OZ", verificou a caixa de e-mails. Antes de desligar a máquina, abriu uma página em branco do word e ficou olhando alguns segundos, talvez minutos. Digitou lentamente as letras que formavam a palavra tédio. Todas em caixa alta. Colocou-as em negrito e itálico. Desfez a função itálico. Aumentou o tamanho da fonte para vinte e oito, quarenta e oito, setenta e dois. Configurou a página para o formato paisagem e ficou brincando de escolher o tipo de letra.

Repousou a cabeça no encosto da cadeira. Queria pensar em alguma coisa, qualquer coisa. Nada lhe veio à mente. Fez força para chorar. Nenhuma lágrima... Desligou o computador de solavanco, direto no estabilizador, foi até a sala e desligou a televisão com brutalidade similar.

Foi ao banheiro com destino ao espelho de corpo inteiro e olhou seu rosto por um longo tempo. “Meu Deus, que sobrancelhas são essas?”. Assustou ao ouvir a própria voz como se a ação tivesse sido involuntária. Em seguida, mirou as pernas cabeludas e abominou as madeixas mal tratadas e sem corte definido.

Ligou o chuveiro e entrou debaixo dele. Deixou a água cair entre as mechas do cabelo, pesando os fios embebidos pela água. Depois tombou a cabeça para frente e deixou a água massagear-lhe as costas. Não gastou sabonete, nem shampoo. Não eram necessários. Afinal, aquele banho não era para o corpo. Queria mesmo, era lavar a alma.

Por Elga Arantes, 2008.

3 comentários:

Bel disse...

Elga.
Eu adoro essa escrita sobre o cotidiano. E, adorei esse relato poetisado. Tantas imagens me vieram...tantas coisinhas pequenas que nos alimentam pela eternidade.
Bom....saber de ti. Sempre bom.
Um beijo,
Bel.

sblogonoff café disse...

Sabe aquela música Angra dos Reis, do Legião?! Senti o coração perfeito batendo à toa... Isso dói!

Se bem que nada está à toa.

"Páginas em branco
Curva e linhas tortas
Um passado a limpo
no papel de pão"

Você vai descobrir o que é que te deixa com fome!!

E enquanto isso, Oz continua entre chuva de granizo e furacões!!!

Beijos

Karen disse...

Oi coração,
o gostoso de ter conhecido tão bem sua casa é te imaginar em cada um destes cantos e saber como eles são, consigo visualizar você...como se de longe fosse telespectadora.
Sabe, vendo nossos dias passarem fico em dúvida qual é pior, o imenso vazio ou a fome desmedida. O ideal seria um equilíbrio mas sabemos que não é nada fácil quando é conosco que acontece...
Vc no tédio e eu no desespero.
Nada melhor que cuidar da alma, mas cuidar do corpo dá pelo menos uma levantadinha na moral...vai por mim..rsss.
saudade.

bjs