sexta-feira, 22 de agosto de 2008

"Cogito, ergo sum"

O homem que não tinha nome acordou cedo, mas se levantou tarde. Não tinha motivos para amanhecer mais cedo. Fugia do céu azul e do café preto sem açúcar.

O som rotineiro dos afazeres domésticos parecia perfurar seu tímpano, tamanho incômodo que lhe causava. Não era preciso se esforçar para ouvir o barulho nada sintônico da máquina de lavar trabalhando ou o chiado alucinado da panela com feijão reclamando da pressão que sofria. E quando reparou na cantoria desafinada e confiante da empregada lavando a varanda, seu sentimento já era de extrema repulsa, quase ódio. Odiava mesmo calcanhares rachados. E como os dela eram redondos! Ela tentou secar as gotas de suor no buço com os lábios inferiores e o homem então percebeu que ela tinha um bigode incipiente e que suas sobrancelhas eram quase uma só. Teve asco. Depois sentiu vergonha e parou de mirar. “Qual era mesmo o nome daquela senhora?”. O homem sem nome não guardava o nome de ninguém - talvez uma desforra pueril.

Quando teve consciência da confusão de seus sentidos, fechou os olhos, inspirou e expirou com uma arbitrariedade pungente, como se o gesto fosse colocá-lo nos eixos novamente. Claro, foi em vão. Há dias tentava analisar que tipo de transfiguração interna o consumia sem obter resposta. Não conseguia ao menos formular suposições admissíveis. O homem que não tinha nome carregava sensações inomináveis.

Tinha o que fazer, mas achou que nada era mais importante do que observar as veias aparentes de seus pés magros e ressecados. Pensou em um hidratante, contudo teve receio que isso ameaçasse sua masculinidade. Aliás, já se preocupava com o mero pensamento a respeito. De assalto, sentiu vontade de chorar, “Isso sim seria uma manifestação de sua sexualidade abalada”, conjecturou. O homem não tinha nome, não sabia dar nome as coisas e não conseguia perceber que certas coisas tinham mais de um nome.

Fez força para pensar em alguma coisa que o abrandasse. Ao contrário, um pensamento retraído o tomou. Sentiu uma leve mágoa em seu peito. Lembrou da caderneta de contatos. Eram tantos nomes! De alguns daqueles, ele não se lembrava mais, outros tantos, certamente, não se lembrariam dele. O restante ... Um novo sopro afligiu seu coração. Fechou a caderneta com raiva. Quis queimá-la, mas se acovardou. Tinha, realmente, pavor de ficar só. Mesmo que algumas vezes seus pensamentos fossem melhor companhia (apesar de deixá-lo exaurido). Era um homem sem nome e sem coragem.

Finalmente, sentenciou. Pretendia alívio. Derrogaria a exaustão. Não deveria mais cogitar, refletir, imaginar, raciocinar, supor. Não queria mais pensar. Em nada. Descartes soprou no seu ouvido, ordenando-o em tom de senso comum. Subiu até o terraço. Ia pular. Sentiu o vento. Sem olhar para baixo fechou os olhos e suspirou movimentando os ombros.

Era um homem sem nome e sem coragem. Desceu as escadas já sentindo fome. Teve vontade. Vontade de comer carne moída salgada, com angu sem tempero e couve.

Apolinário era mesmo um homem de muita personalidade!

Por Elga Arantes, 2008

7 comentários:

Karen disse...

Oiiii!
Estava falando agora mesmo com uma amiga sobre coragem. Fico indignada com a qantidade de pessoas covardes que fingem ser corajosas...complicado, coração...

ia postar hoje o polêmico mas aconteceu algo agora que serei obrigada a escrever sobre isso e deixar o polêmico para depois. Preciso muito expor o que sinto neste momento antes que exploda. Estou P... da vida.

Anota meu email: kamastria@gmail.com e msn: kamastria@hotmail.com

bjs

Elga Arantes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sheyla disse...

O pior é saber da existência desses Apolinários por aí. Aliás, o pior é conhecê-los.

Fernanda Matos disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Eu amei um Apolinário...

Elga Arantes disse...

Anônimo,

Seus sentimentos também estão confusos, não?

Conheceu, amou... amou e conheceu. Ou na verdade, não chegou a conhecer? Amou o desconhecido, ou desconheceu o amor?

Eu, te conheço. E, por isso, amo você.

sblogonoff café disse...

Elga!
Como eu disse à Karen, passei por esse post quando ele havia saído do forno, mas eu estava "apertada de costura" e por isso preferi não comentar.

Perfume... Já viu esse filme? O homem sem cheiro (...)

Adorei o texto e as minúcias dele, como os calcanhares rachados, o suor do buço,as vontades conflitantes...
Adorei!

Tem outro filme (é que eu a.d.o.r.o filmes!)acho que é "Quando a noite cai" que fala sobre denominar as coisas, os sentimentos.É engraçado, mas certas coisas, mesmo existindo concretamente, só passam para o plano da consciência e interatividade depois de terem nomes. É como um relacionamento em que um casal estabelece regras tácitas, como exclusividade e encontros diários. Isso só será namoro se alguém disser: Hei, o que a gente vive? É namoro? E o outro: é.
Acontece que já era antes, só faltava a verbalização.

Li em algum lugar, não me lembro onde, que passamos a ter poder sobre as coisas depois que lhes damos nomes. Aí vem aquela história de citar simbolicamente Adão e Eva denominando os bichos do paraíso e assim tornando-se os reis da criação. E por falar em Rei, também tem a história do Rei Arthur e sua espada, Excalibur. Tem o violino, Stradvarius e nossos cachorros, peixinhos, instrumentos (meu violão se chama Todinho!Rs).
Nomes são identificação.
Mas o verbo (não o verbo, mas o verbo, sabe?!) é a alma dos seres, animados ou inanimados.
As coisas existem, estão ali, vivas, pulsantes, mas se forem denominadas, será como se tivessem tocadas por uma mágica que lhes investisse de poder de transformação.

Nunca um nome é só um nome.
Tem pseudônimos, codinomes e apelidos!Rs

Ai, ai...