quarta-feira, 30 de julho de 2008

"E eu (não) vou esquecer de tudo; das dores do mundo..."

“Não suportaríamos lembrar de algumas dores”. Foi com essa frase que o médico fechou a explicação para a pergunta feita a ele pela paciente. Ela não entendia porque não sentira nenhuma dor no momento do acidente que sofrera. Dr. Garrido, então, a esclarecia que o corpo humano era algo tão perfeito que bloqueara suas lembranças para as dores insuportáveis. Dizia ele que ela havia, sim, sentido muitas dores, tantas e tão fortes, que seu cérebro tratou logo de impedir a memorização delas.

Depois de mais de dez anos, porém, ela ainda conseguia se recordar bem daquele acidente. Com menos freqüência, mas com todos os detalhes que seu cérebro havia deixado passar despercebido. Logo após o atropelamento, se lembrava apenas de algumas cenas desordenadas e bruscamente interrompidas. Assim, como nos recursos usados pelo cinema para representar as lembranças de seus personagens, causando sensações de impacto aos seus expectadores. Momentos vividos como que em “flashes”.

O primeiro, parecia mais um daqueles sonhos que a gente tem, sabendo se estar sonhando. Ela abriu os olhos. Cada etapa que se sucedeu a essa deve ter ocorrido em menos de alguns segundos, ou mesmo em milésimos destes. Mesmo assim, podia descrever o processo e os caminhos de seus pensamentos naqueles instantes. Olhou ao seu redor. Hospital. Ela sabia ter sofrido um acidente, pois quando forçava a memória vinha-lhe à mente a imagem de dois grandes faróis redondos quase que a lhe roçar o nariz. Do jeito que era preocupada, sua mãe, poderia querer proibí-la de ir à festa de formatura por conta daquela bobagem. Assim, num ímpeto, tentou levantar-se da cama. Como não obteve sucesso na empreitada, tentou entender o porquê do fracasso. “Não sinto minhas pernas”, desesperou-se. Descontroladamente, tentou movimentar os quadris. Sabia que paraplégicos não tinham autonomia do próprio corpo da cintura para baixo. Nada! Então, sentiu como se seu estômago tivesse levado um soco. Depois veio a sensação de que uma mão esculpida no gelo rompera seu abdômen e apertava com força seus órgãos internos e rapidamente soltava, deixando ali, apenas algumas mariposas. Depois disso, sentiu como se o coração lhe viesse à boca, e só sabia ser aquilo apenas uma sensação porque conseguiu berrar pavorosamente, chamando pelo pai.

Ah, aquela expressão ela nunca mais pôde esquecer – apesar de ser quase insuportável, sua lembrança. Era uma mistura de compaixão e ternura. E como conseqüência de seu desequilíbrio emocional, ele simplesmente respondeu “Não sei” quando perguntado se ela não andaria mais.

Ali, se rendeu pela primeira vez. Quando outra vez acordou, já estava em outro lugar. As vozes exaltadas, os gemidos de dor e todo o tumulto daquele corredor de hospital deixavam-na confusa. O frio descomunal que sentia em cima daquela maca estreita a fizera ter medo. Mas, não. Era física demais a dor provocada por aquela agulha em sua medula. Era bem material o líquido que lhe invadia, causando a sensação de estar lhe queimando. Aquele outro lugar ainda não era o outro plano. Ainda bem, aliviou-se. “Onde estariam todos?”.

Rendeu-se de novo, mas, antes, ainda pôde ouvir o som contínuo e incômodo da sirene da ambulância a levando para algum outro lugar. “Onde estão todos? Porque estava ali sozinha?”. Mal sabia que além de uma carreata que acompanhava incansavelmente os caminhos feitos por ela pela cidade, boas energias, provindas de orações, bons pensamentos e fé, também a cercavam.

Depois disso, só despertou quatro dias depois. Olhos curiosos e vestimentas brancas a observavam e faziam perguntas que a confundia. Ela respondia o que não queria, sabendo ser outra a resposta que deveria dar. Queria o que não conseguia dizer. Estranhava tudo. Principalmente aqueles olhares de surpresa. É que ela ainda ignorava muitos detalhes que sua consciência a impedira de conhecer por si só.

Só mais tarde lhe contariam das dores alheias, do coma, da quase morte, das hastes que a acompanhariam anos a fio, das cirurgias, dos sonhos que teria que deixar para mais tarde, dos outros que deixaria para sempre. Ela só tinha 18 anos e tantos, tantos planos... Agora teria que abandoná-los para cuidar de assuntos mais urgentes. O principal deles era reaprender a andar, mas, claro, somente quando os ossos de sua bacia estivessem colados novamente.

Ainda, antes disso, haveria visitas, muitas visitas, comadre (e não era a mãe de nenhum afilhado), pedaço de carpete para "encerar o chão", revistas trazidas por um amigo, livros, banho de gato, “Samia, bate a porta com força!”, tirar os pontos sem autorização médica, CAT, perguntas sobre uma tal luz e amor. Muito amor!

Mais tarde, ela apenas admiraria como era incomensurável a superioridade do espírito sobre a matéria. Ninguém conseguira fazer por sua mente o que esta fizera pelo seu corpo. Nada, nem ninguém, conseguiria fazê-la esquecer de dores igualmente fortes àquelas do corpo - talvez - e que lhe renderiam marcas no espírito, cicatrizes na alma. Com essas lembranças, ela teria que conviver. Mas isso é uma outra história triste. De muito aprendizado, mas triste.

Ela voltou a andar... e como andou! Ela foi longe...


Por Elga Arantes, 2008.

6 comentários:

Fernanda Matos disse...

Maravilhoso!
As dores...
E a cura...

sblogonoff café disse...

A Vontade é o maior dom so ser humano.
A Vontade é que supera e intensifica o Amor.
E a dor, mesmo a aparentemente acidental, vem como Mestra, para revelar nossa força, fazer resplandecer nossa luz e recriar. É claro, se pudermos e quisermos aprender com ela, tanto a física como a moral.
Acho isso uma das coisas mais belas da existência, superar, mostrar aquela idéia de que somos mais que uma alma inútil dentro de um corpo. É o super homem emergindo da profundidade do ser para os possíveis reinícios.
É triste ver gente com tanta força latente tropeçando em pedras pequenas, descrente na própria capacidade de superação, dizendo que só o dono da dor sabe como dói. A sua dor ninguém pode sentir por você, mas a mesma providência que não permite que você se lembre das maiores aflições é a que faz com que você encontre maneiras de transformar aquilo, como co-partícipe da criação.
Parabéns!
É a beleza de existir.

Karen disse...

Nossa, chorei aqui. Primeiro pq tive a idéia de ligar a música que do Yann Tiersen que vc colocou, e fui ler seu post...Nossa me senti assistindo a um daqueles filmes do telecine cult.
Olha, realmente fico bem confusa com tudo isso que acontece aos seres humanos. A dor, bom, cada um tem a sua, umas maiores, outras menores, mas todas dóem. Vezes ou outra me pergunto se eu passasse por uma situação dessas doeria menos do que perder a Lelê. A superação vêm de onde, da alma? O que existe além do corpo e da alma é o que consciência? Esta não faz parte da segunda?
Mas é bem isso, tem gente que aprende com qq coisa, outras não aprendem nem com a maoir dor que um ser possa sentir. E é isso que torna umas pessoas mais "humanas" que outras. Não teria graça se fôssemos todos iguais mesmo.

bjs

Karen disse...

Oi amiga querida,
Puxa, vim aqui pensando qual seria o assunto do seu novo post....

Volta! rsss
bjs

Anônimo disse...

Há muito perdera o chão. Sem querer, passou a levitar entrando nos estado sentimental das palavras. Para que pernas se vagamos pelo mundo sem sair do lugar? Adorei o relato em terceira pessoa. Mas quem seria esta outra? Aos poucos estamos conhecendo mais sobre a menina que desaprendeu a andar e hoje apenas voa. Continuo adorando Tulipas!

Elga Arantes disse...

Vc nunca me enganou Rodolpho. Sempre te enxerguei assim. Assim como? Assim. Perspicaz e... sensível. Homem não gosta desse adjetivo, né? Mas não tive outro para defini-lo, agora.

Obrigada. Isso pra mim foi um elogio e tanto.

Qdo ela perdeu o chão foi obrigada a levitar. Depois, se propôs a aprender a voar. Conseguiu! Na maioria das vezes, consegue. É determinada, apesar de tudo. Às vezes, voou em círculos, mesmo assim, foi longe. Talvez não para vc, ou para esse moço que está aqui, instalando o box.Mas para ela, foi longe.

Ela também adora Tulipas e chama-se Alice, se deseja saber.

Um beijo.

Bora p samba, hj?